A Geralda da Casa Verde
Uma rua de concreto espinhoso, um pouco inclinada e escura. Fica em um cruzamento da Rua dos Bancos com a Rua Relíquia, na Casa Verde. Ali, fica uma figura conhecida por todos da região. O bairro, que é localizado no Centro de São Paulo, é predominantemente residencial. Há poucos comércios, mas os que têm são conhecidos por todos os moradores. As escolas são poucas, o que faz com que a garotada do bairro inteiro se conheça, nem que seja de vista, e saiba de todas as histórias que circulam. Na Rua João Rudge, fica o Colégio Centenário, que tem um diretor famoso por humilhar os alunos. Na Rua Reims, está o Matão, onde acontecem as famosas brigas entre escolas do bairro. As guerras entre as instituições de ensino tornaram-se comuns, pois os estudantes saem da aula no mesmo horário e realizam caminhos parecidos ao voltar para casa. Coincidência ou não, às 12h20 a garotada passa pela mesma esquina, na Rua Relíquia. Lá, diariamente, está a mulher que os alunos apelidaram de Geralda. Ela caminha pelas ruas do bairro ao longo do dia como uma verdadeira andarilha. É possível dizer que ela é o olho e o ouvido do bairro. Ela é uma Voyeur dos garotos brigando semanalmente. De dia, é uma senhora que anda junto a um carrinho de mercado, com um olhar triste e desesperado. Ao entardecer, Geralda vai aos bares da Rua Relíquia e, mesmo sem dinheiro, os donos de bares dão bebidas para ela. Como virou uma figura carimbada, as pessoas da região não conseguem dizer “não”, quando ela pede a garrafa de Velho Barreiro na frente do bar. Ela fica embriagada, dança, pula, canta e faz malabarismos. Isso ajudou a criar a imagem que os meninos criaram dela para os pais de “A doida do bairro”. Ninguém sabe como, mas ela sempre dá um jeito de voltar para a barraca montada na rua da escola de música. A fama começou a crescer e os pais das crianças que caçoavam da senhora tomaram conhecimento da existência dela. Então, a Geralda consolidou o apelido na Casa Verde. A fama cresceu em tal ponto que o nome de Geralda foi parar na televisão. Gotino, antigo apresentador do “Balanço Geral”, programa da Record, conhece a fama de Geralda. Há alguns anos, virou assunto na comunidade casa-verdiana uma onda de assaltos feitas por ciclistas. Gotino, ao noticiar e falar sobre a questão, disse: “Casa Verde, o lar da famosa Geralda”.
Por trás dessa figura emblemática, há uma pessoa que sofre com a situação de rua há mais de dez anos. Ela nasceu em 1978 e atualmente tem 47 anos de idade, apesar da situação difícil tornar a aparência de ser uma pessoa de mais de 60 anos. O tempo nela se insinua sem cerimônia: nos pés rachados, nos cabelos embaraçados, com uma calvície, e um olhar vazio. O pessoal da região diz frequentemente que ela tem mais de 60 anos. Fala arrastado, usando palavras que tropeçam na falta dos dentes. “Fica difícil de explicar as coisas, mas você tenta entender, né?”, disse num sussurro torto, como quem pede desculpa por existir.
Nasceu em 1978, em Belo Horizonte. Era de um morro apertado de gente. A infância foi feita de pão murcho e silêncios familiares. A mãe nunca teve condições de dar uma vida melhor para a filha e, por isso, Geralda não estudou. Apesar disso, sempre buscou trabalhar para sair da condição de vulnerabilidade financeira. Na adolescência, conseguiu o primeiro emprego, quando era vendedora em uma loja. Ao iniciar a vida adulta, tinha o sonho de tentar oportunidades em um dos polos da economia brasileira – São Paulo.
Não teve filhos — uma ausência que não esquece. “Fui besta. Devia ter tido um pra não ficar sozinha desse jeito.” A voz embarga no fim da frase, mas ela engole o choro com a prática de quem aprendeu a não chorar em público. Ela diz ter sido criada pela mãe, já que o pai nunca deu sinais de existência. Chegou a São Paulo no fim dos anos 90, iludida por uma vaga de emprego em uma empresa de ônibus.
Veio com o que tinha: uma mala de viagem e a esperança de ter conseguido um emprego de motorista. Geralda recebeu uma proposta, quando um amigo de Belo Horizonte conseguiu uma vaga e falou dela na empresa. Ela ficou na companhia de ônibus por alguns meses, mas foi mandada embora. Geralda não gostava de dirigir, mas foi a única opção que teve no momento. Ainda em Belo Horizonte, conseguiu tirar a carteira de motorista em uma promoção que rolava na cidade e que garantia aulas na autoescola de graça. Depois disso, achou que era o momento certo para vir para São Paulo e, com a ajuda do amigo, arrumou o emprego. Os anos seguintes foram uma sequência de portas trancadas, nomes esquecidos e telefones que não funcionavam mais. Os parentes em Minas ficaram para trás, como um sonho que se dissolveu no asfalto quente da cidade. O amigo da companhia de ônibus desapareceu. Depois de entrarem juntos na empresa, o homem ficou por três meses trabalhando lá e saiu. Desde então, Geralda não ouviu mais falar do colega.
Ao chegar em São Paulo, vivia na Mooca. Era um bairro tranquilo e, na época, com o salário que ganhava, conseguia viver naquela região pagando um aluguel barato. Então, depois de 1 ano na Mooca, veio para a Casa Verde. Geralda apaixonou-se pelo local. Para a infelicidade de Geralda, aumentaram o aluguel consideravelmente no terceiro mês morando no bairro e, mesmo tentando negociar com o dono da casa, foi parar em situação de rua. Hoje, sua estadia é uma barraca sob as árvores. “Aqui pelo menos tem sombra. E, quando chove, as folhas seguram um pouco”, explicou, apontando para cima com o dedo indicador. Ela escolheu aquele pedaço de rua porque ali a água não inunda tanto, e os vizinhos — apesar de silenciosos — não a expulsaram. Sobrevive do que encontra, do que doam. Alguns moradores solidarizam-se pela mulher. Esse é o caso de Caio Casadei, um vendedor da região que, além de ajudar Geralda, diz ter testemunhado pessoas ajudando Geralda, apesar de serem poucas. Ao passar de carro, viu pessoas dando cobertores e comida mais de uma vez. No entanto, isso não acaba com a dor de viver nesta situação, nem com o descaso feito por alguns moradores, a exemplo de uma situação que Geralda passou envolvendo a “loira aguada”, como ela chama a mulher, que xingou Geralda porque a barraca dela estava “no meio do caminho”.
Nesse tempo, a cerveja que gostava de tomar virou um vício no álcool. Hoje, ela toma o que dão, que é composto, principalmente, de pingas baratas. Não pede com insistência, nem agradece com efusão. A vida lhe ensinou a não esperar muito das pessoas. Não se queixa, mas também não sorri. Quando alguém se aproxima, ela ajeita o pano da barraca e se senta mais ereta, como quem tenta manter alguma dignidade entre o que restou. Também está sempre na defensiva, recusando-se a conversar por muito tempo e irritando-se rapidamente. Nesse caos, os carros passam, as crianças vão à escola, os vizinhos passeiam com seus cachorros. E ela, sempre ali, quase invisível, como parte da paisagem que todos fingem não ver. Quando é lembrada, é vista como uma piada. Não é louca, não é drogada, não é violenta. Só está viva demais para caber no esquecimento, e solitária demais para incomodar. Se São Paulo é feita de milhões de histórias, a dela é uma que ninguém escreve — mas que resiste. De barraca em barraca, de árvore em árvore. Enquanto a cidade corre, ela permanece.